“Quando você tira a casca você degusta o fruto que tá ali dentro. Agora tem frutas que têm capas excepcionais, que são convidativas. Outras que indicam o que você vai sorver. Outras que não, que guardam um mistério”.

De todas as metáforas sobre esse trem de capa que já ouvi, essa de Tunga talvez tenha sido a mais precisa. Muito mais do que uma embalagem, uma apresentação, um recado, a capa ora conta uma história, ora é parte da história. A fala de Tunga aparece no 24º episódio da segunda temporada do programa Arte na Capa, em que o artista conta do processo de criação da capa de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, de Otto.

Otto – Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (Brasil, 2009)
Performance Laminadas Almas, de Tunga.
Fotos de Talita Miranda.

A série, criada pela produtora Imagem Tempo, e veiculada pelo Canal Brasil, documenta o processo de feitura da capa de discos fundamentais da música. O site da produtora conta um pouco sobre o projeto:

Mais do que mera embalagem, as capas são, na verdade, a representação visual da proposta musical do álbum. Fruto da colaboração entre os músicos, gravadora, artistas gráficos e fotógrafos, muitas capas se tornaram antológicas pela força de suas imagens, layout, pelo significado e carga ideológica que carregavam, pelas histórias ou ideias que elas representavam.

A primeira temporada acaba trazendo um olhar mais histórico, pois aborda essencialmente discos ou capas clássicas. Só na primeira temporada, a série traz depoimentos de importantes capistas, como Cesar Villela, Elifas Andreato, Gringo Cardia, Luiz Stein, bem como o fotógrafo Cafi, Tunga, entre outros; e também os depoimentos dos próprios artistas. Em 26 episódios, a única mulher contemplada é Maria Bethânia.

Entre Martinho da Vila, Cesar Villela e Elifas Andreato, dois dos mais importantes capistas da história da música brasileira (foto: Imagem Tempo).

Nas temporadas seguintes aparecem artistas mais recentes e ainda em atividade, misturados à outros clássicos. Por fim, o episódio de encerramento da quarta temporada é com Pabllo Vittar.

Em 2017, fiz uma entrevista por e-mail com o João Felipe Freitas, diretor da série. Com a pausa do blog, acabei não publicando a entrevista, mas agora vai! Aliás, é bom ressaltar: na época da entrevista, a quarta temporada ainda não tinha sido lançada. Todas as temporadas estão disponíveis no Globoplay.

cover.jpg: Conta um pouco da sua formação profissional e o que te levou à ideia do programa.

João Felipe Freitas: Me formei em publicidade e jornalismo na PUC-RJ, mas estagiando em uma produtora descobri que o que eu queria mesmo era ser montador. Daí para me arriscar na direção e roteiro foi praticamente um movimento natural. A ideia do programa surgiu de forma coletiva e quase por acaso. Estávamos numa reunião de pré-produção do nosso filme curta metragem “Do meu lado”, dirigido por Tarcísio Lara Puiati. Com a gente, essas reuniões nunca são focadas em um único assunto… Vida pessoal, sonhos, projetos futuros: conversamos sobre tudo. Em certo momento, perguntei pro Tarcísio: e pra TV? Vamos pensar em algo? E ele prontamente respondeu: que tal um programa sobre capa de disco?

A ideia era fantástica, mas precisávamos desenvolvê-la. Levei o projeto para meus sócios da Imagem-Tempo. Eduardo Ades achou que um bom formato para essa ideia seria o de interprograma, episódios de curta duração (3 minutos, no nosso caso), que funcionam bem para consumo no streaming. Daniela Santos, produtora executiva, batizou o projeto de “Arte na Capa”. O Canal Brasil, nosso parceiro nos documentários “Crônica da Demolição”, “Torquato Neto – Todas as horas do fim” e “Yorimatã” – além de alguns DVDs – aprovaram o projeto e tudo começou.

cover.jpg: Os discos apresentados no programa compõem um importante acervo de parte da musica brasileira do século passado (e alguns poucos dos anos 2000). Focam em artistas, por assim dizer, consagrados. Partindo de um ponto de vista mais pessoal, o que você e o resto da equipe gostam de ouvir em casa e de que maneira isso influencia nas escolhas dos discos abordados no programa?

João Felipe Freitas: Ouço de tudo, sem grandes preferências. Toda música tem seu momento. Hoje, o que tenho escutado mais é a tal da MPB. Lá em casa, na minha infância, a devoradora de discos sempre foi minha irmã, sete anos mais velha que eu e que tinha uma das paredes do quarto coberta de LPs. Bossa-Nova e Roberto Carlos eu escutava no toca fitas do carro do meu pai. E eu mesmo demorei muito tempo até ter meu próprio som dentro do quarto. O que fez de mim uma espécie de “voyeur musical”, um ouvinte da música alheia bastante interessado em descobrir o que o outro gosta de ouvir.

Acabei casando com uma mulher que trabalha na indústria fonográfica e entende bem mais do assunto do que eu, mas acho que minha ignorância, minha curiosidade e minha paixão por música é o que justamente me faz querer saber mais e ouvir mais sobre o assunto. Mas quando penso em capa de disco, lembro mesmo é da gigantesca parede da minha irmã e como aquelas capas coloridas, de gêneros variados, de RPM à Maria Bethânia, me atraíam. As escolhas das capas passam por esse lado afetivo, mas também fazem jus a capas e discos considerados antológicos.

Luiz Melodia segura Pérola Negra (foto: Imagem Tempo)

cover.jpg: Você comentou que a quarta temporada já está a caminho. Pode adiantar alguma capa que vamos ver/ouvir?

João Felipe Freitas: Ainda teremos capas clássicas, como a do RPM, feita pelo artista plástico Alex Flemming, mas também capas bem atuais, como Pabllo Vittar e Baiana System.

cover.jpg: São quase 80 episódios distribuídos em três temporadas e aproximadamente 17 mulheres representadas, se não contei errado. Você considera que as mulheres estão bem representadas na música brasileira? E no mercado das capas de disco, as mulheres designers, artistas plásticas etc estão bem representadas (em quantidade e relevância)?

João Felipe Freitas: Acho que na música em geral as mulheres estão bem representadas. Temos uma nova geração de cantoras, temos uma cena pop forte. Mas devo fazer a ressalva de que essa é uma perspectiva masculina, um olhar provavelmente míope. O que enxergo com mais clareza é que o programa não está representativo o suficiente e essa falha é resultado de vários fatores que influem nessas escolhas de que discos fazer em cada temporada, sendo um dos mais determinantes a agenda da própria artista. Já com relação aos capistas, historicamente, o número de mulheres é bem menor do que de homens, mas acredito que essa realidade esteja mudando.

cover.jpg: De todos os episódios, teve algum que marcou mais? E por quê?

João Felipe Freitas: Foram tantos! Entrevistar Cesar Villela para o episódio com as capas da Elenco foi um privilégio. Uma aula também conversar com Elifas Andreato, Cafi, Luiz Stein, Gringo Cardia, Vik Muniz… Difícil destacar apenas um episódio.

Tom Zé segura Todos os Olhos (foto: Imagem Tempo)